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“'Não penso que o homem tenha alguma chance de emitir alguma luz antes de dominar o que o apavora. Ele escapa, a esse preço, do estranho desconhecido de si mesmo que até aqui o definiu'. A frase de Georges Bataille me dá uma pista para refletir sobre o que impulsiona a pesquisa de Matheus de Simone, que avança sobre três pilares: a ideologia patriarcal nos brinquedos infantis, os sistemas de controle que sequestram subjetividades, e o erotismo. Nesse jogo criativo o corpo é o território de batalha, e o inconsciente é um espaço social e político a ser conquistado. Estruturas disciplinares, espaços de fiscalização, fábricas de subjetividades obedientes são forças que ativam o jogo. Nesse tabuleiro, repetir os lances, cumprir regras, contar com um fim e não afirmar o acaso são operações de mau jogador. Na instalação Medo do cacete (2017), blocos de madeira para montar castelos — tradicional brinquedo infantil — se transfiguram em cacetes - objeto para desferir pancadas. Abre-se um campo semântico, objeto utilizado para intimidar ultrapassa o mero significado de interdição e introduz, por cima da moral, uma erótica. De forma delicada e lasciva os trabalhos de Matheus seguem nos questionando: O que coloca nossas vidas em perigo?"
Virgínia de Medeiros
Artista visual e integrante do júri do 6º Prêmio EDP nas Artes (2018)
"O tempo consome tudo - já disseram por aí. O tempo transforma tudo - complementaram. Desfazer e refazer é coisa do tempo. Quem inventa esse tempo? Talvez os lugares inventem o tempo para serem consumidos e logo em seguida reconstruídos, mas numa nova condição: a condição é mudar. Quando a aridez invade a terra, ela clama pelo tempo. Ela quer ser nova paisagem, ela quer uma mão, um novo corpo, uma nova recordação. Ela quer gritar que existe e reexistir para gritar. Ela quer marcar o seu espaço e construir um território como se constrói um lar: com casa, corpo e jardim; com a mão, com a cor, com a memória. Há de se construir territórios em toda parte. Há de ser território. Essa condição de ser alguma coisa cria um compromisso consigo mesmo. Quando eu sou meu território particular, eu sou capaz de transformar qualquer paisagem em lugar de morada. É como brincar de ser tempo. O tempo que consome tudo. O tempo que transforma tudo. Mas quem inventa esse tempo?
"Ser tempo para os três artistas é poder modelar os seus próprios espaços, sejam eles quais forem. O que importa de fato é criar lugares arejados, que desafiem os humores do ressecado chão e dos galhos secos. O confronto, no entanto, se dá pela via do afeto. Através dele é possível não somente inventar espaços para estar, mas espaços onde podemos ser. Lá é possível acharmos oásis, sondarmos novos lugares ou manter-nos a salvo. É lá que construímos territórios comunicantes capazes de serem transportados para as mais longínquas distâncias. As terras mais ermas podem ser conectadas como se estivessem tão perto, que sequer conhecemos os seus limites. É nesse momento que nos damos conta que a terra que habitamos magicamente vira um terreno em expansão, e seria um trabalho árduo traçar os seus contornos, investigar as suas fronteiras, supor um início e um fim. É da sua natureza ser cambiável, território em constante circulação, a mercê do tempo que insiste em consumir tudo, transformar tudo. Mas quem inventa esse tempo?"
João Paulo Jacob
Artista e pesquisador, para a exposição Territórios Circulares (2017)
"Há pessoas-lugares que nascem com vocação para rupturas. Solos e consciências sacras continuamente profanadas e purificadas pelos afazeres daqueles que ali circulam. Narrativas que inicialmente se ensaiam, circunscrevem-se nos didatismos sociais [esses modos de ser e ver] que encarceram a criança-artista. Entre os contos quiméricos que modulam e modelam o humano, o ethos de uma suposta religiosidade – aqui primordialmente cristã – talvez seja o elemento mais castrador, encorpado de um acriticismo potencialmente avassalador, que promete os céus mas nega os hedonismos da terra.
Tudo é acúmulo. Há na pessoa-lugar, nessa existência simultânea, uma certa transitividade. Ao encontrar-se inquieto nas metafóricas coordenadas sociais que lhe foram imputadas, se transcreve, desvia-se do mandamento cristão e busca a confortabilidade de um novo poder ser. É ser [temporariamente] crisálida, confrontado e submetido às prisões queratinosas da consciência adestrada no pecado e na culpa que advém do desejo; para posteriormente ser ação. Libert(ação).
"Amar. Desejar. Foder: Somos verbo, desde aquele momento mítico em que o verbo fez-se carne. Nesta consciência atingida, a pessoa-lugar abraça o seu querer, é o homem que barganha seu prazer com outro homem, que transubstancia o ato digno de punição [Quando um homem se deitar com outro homem, como mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão, o seu sangue será sobre eles – Levíticos 20:13] em um matar-se a si próprio, facetando os anacronismos que lhe foram ensinados para ser outra vida, ser lugar-pessoa que transita no seu próprio desejo. É um morrer acriticamente para renascer criticamente.
"Matheus de Simone produz a peculiar condição de um ciúme construtivo, negociando [de forma plástica] aquilo que deseja com aquilo que não se pode abrir mão; é a criação de um lugar estético através de um ato litúrgico: mastiga a matéria amorfa de sua tradição religiosa para esculpi-la como deseja – e não à imagem e semelhança de um Deus punitivo e emasculador. Ao desenhar-se como um novo homem cria paisagens cartográficas de um caminhante sem pressa e sem destino.
"Ao confessar-se [entredentes] ao seu observador, livra-se da inerente condição humana do 'mea culpa', do diminuir-se e assumir-se fracassado diante do divino, e nos convida em um ato derradeiro e apócrifo: tomai todos e comei.
Este é o verdadeiro rito eucarístico, sermos antropófagos de nós mesmos, dilacerar vigorosamente nosso eu-Valentim, digerindo o molde, e encontrarmos novas coordenadas dentro de nossas pessoalidades. Mapear- se [visualmente] apenas para constatar que nos encontramos[felizmente] perdidos."
Henrique Grimaldi
Curador da exposição Eucarístico (2017)
"Matheus propõe ações performáticas e cartográficas a partir de sua vivência como estrangeiro em Olhos d’Água. Suas impressões foram influenciadas pela cultura popular, a Feira de Troca e todo o movimento cotidiano da cidade que o acolheu. Sua relação com esse lugar e com os moradores se estabelece por meio de caminhadas e descoberta de elementos naturais utilizados para preencher o buraco encontrado na parede do espaço intimo do seu quarto. Preenche esse oco e massageia o corpo como ação poética; Relaciona o umbigo como ponto vital, com a forca vital que irradia no encontro dele com o outro. Transforma suas impressões urbanas e paisagísticas, experienciadas durante sua residência, em mapas geográficos, resultado de uma construção coletiva definida e guiada pelo artista a partir de outro lugar, do seu lugar de origem."
Nivalda Assunção
Curadora da exposição individual no Núcleo de Arte do Centro Oeste (2019)
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